Convidei para Jantar… David Lynch e servi-lhe um Bloody Mary

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E na mensagem dizia:

Que na casa haja o mínimo de luz possível e a presença de espelhos.

Levarei companhia. Coloque mais um lugar na mesa.

D.L.

Quando entrou trazia um ar sorumbático. Observou tudo ao seu redor cabisbaixo como que a certificar-se do anteriormente recomendado. Apresento-lhe a Log Lady – disse, esboçando um esforço para ser cordial. Muito prazer– respondi-lhe.

Conduzi-os à sala de estar e perguntei-lhes se desejariam tomar algo antes do jantar.

Não obrigada, afirmou prontamente a Log Lady. Para mim, um bloody Mary– respondeu Mr. Lynch.

A Log Lady tinha-se afastado de nós. Percebi que se tinha levantado da poltrona e que se encontrava junto à vidraça da janela a olhar fixamente para o infinito. Lá fora a natureza começava a denunciar o final do dia. Reparei que o seu olhar percorria as sombras e a luz ténue que operavam contrastes nos troncos das árvores. Ali ficou por algum tempo, estática e absorta nos seus pensamentos divagantes.

Na sala, o ambiente continuava lúgubre e os diálogos aconteciam na penumbra desejada, que se pretendia intimista mas que ao invés se denunciava intimadora. David articulava um discurso monocórdico, lânguido e confuso nas pequenas frases que proferia, constantemente interrompidas pelo seu próprio pensamento alucinado.

Perguntei-lhe que projetos tinha na forja. Respondeu-me: Sim, estou a gostar muito do bloody Mary. Está perfeito.


Nesse momento não compreendi se Mr. Lynch estaria distraído ou se não pretendia revelar possíveis planos. Atrevi-me com educação e questionei-o novamente: Mr. Lynch, irá em breve surpreender os seus fãs com um novo filme ou série televisiva?

Deixou transparecer uma frieza evidente. Senti que embarcara em caminhos impróprios e que tinha ferido a sensibilidade caraterística dos artistas, que me tinha intrometido nos projetos de um realizador da sétima arte para quem o sobrenatural e o oculto são fontes de inspiração.

– Aceitei o seu convite para jantar. Peço-lhe que não misturemos o real com o virtual – afirmou tacitamente.

Fiquei confusa e rapidamente respondi com um “concerteza”.

Sentiram? – perguntei.

– Outra vez. Sentiram? – perguntei novamente.

A terra treme ou trata-se de um efeito especial? – perguntou Lynch ao mesmo tempo que a Log Lady se abeirava de nós, sempre em silêncio e com passos de lã.

Infelizmente Mr. Lynch o que está a acontecer é bem real. Protejamo-nos– disse-lhes rapidamente.

Abrigámo-nos debaixo da mesa da sala de jantar, onde nos encontrávamos de joelhos, com o olhar fixo uns nos outros e os restantes sentidos acionados.

Nesse instante, os copos e os pratos, que se encontravam por cima de nós, começaram a tilintar novamente como que num frenético bailado entre porcelana e cristal. Nesse mesmo momento, um dos espelhos da sala desprendeu-se da parede e caiu transformando-se numa multidão de pedaços de luz cortante que invadiu todo o espaço circundante.

– É o espírito de Laura Palmer! É a vingança anunciada! – dizia Mr. Lynch baixinho como que a evitar ser ouvido.

Eu e a Log Lady levantámo-nos com cuidado, medindo os passos à medida que nos íamos desviando das miniaturas de vidro, mas Mr. Lynch permanecia debaixo da mesa com as mãos na cabeça e o olhar esgazeado como se aguardasse uma tragédia maior, vociferando palavras e frases sem nexo, incompreensíveis e alimentadas pelo delírio nervoso.

Finalmente o tremor havia parado. Imperava o silêncio.

-Mr. Lynch! Mr. Lynch! – tive de elevar o meu tom de voz como que para acordá-lo daquele estado de transe.

-Mr. Lynch! Mr. Lynch! Acabou de testemunhar um tremor de terra. Esqueceu-se que está a pisar solo vulcânico!

Então, não fomos visitados pelo espírito de Laura Palmer?

A Log Lady baixou-se para ajudá-lo a levantar-se e sussurrou-lhe ao ouvido umas palavras indecifráveis.

Mr Lynch, sirvo-lhe outro Bloody Mary depois deste encontro com o real? – perguntei, denunciando algum prazer malicioso.

Com esta receita, participo na 4ª edição do passatempo “Convidei para jantar…”, promovido pela Ana, a decorrer, este mês no blogue Menu Verde.

Ingredientes

1 dose de vodka

2 doses de sumo de tomate (usei Compal)

½ dose de sumo de limão

3 ou 4 gotas de molho inglês

1 ou 2 gotas de molho Tabasco

1 pitada de sal

cubos de gelo (3 ou 4 por copo)

1 tomate cereja por copo para decorar

Preparação

Coloque o gelo num copo alto. Adicione a pitada de sal, o sumo de limão, o molho inglês e o tabasco.
Verta o sumo de tomate e mexa bem.
Finalize com uns pozinhos de pimenta de caiena.
Decore o copo com um tomate cereja.

fontes de inspiração:
http://www.youtube.com/watch?v=q6qMfxMc6iI

– Mr.Boston. Official Bartender’s and Party Guide

Foi um prazer participar mais uma vez neste passatempo.

Patrícia

P.S. Se preferirem experimentar uma bebida mais tropical, encontram aqui essa sugestão.

15 Replies to “Convidei para Jantar… David Lynch e servi-lhe um Bloody Mary”

  1. LOL, David Lynch era um dos meus escolhidos para este passatempo, juntamente com o Tim Burton e o Francis Ford Coppola. Mas ainda me resta um trunfo na manga, vou ver se me despacho antes que alguém o convide antes de mim 😀

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  2. O David Lynch é um dos meus favoritos, desde o Twin Peaks ao Mulholland Drive.
    Adorei o teu texto, li em suspense e num misto de quero ver o que vai acontecer e será real ou virtual? Como se de um filme dele se tratasse.
    E um belo cocktail servido. Parabéns.
    Um abraço.

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  3. Genial a tua participação! O David Linch é realmente um mestre do surrealismo! Lembro-me bem do seu ‘Lost Highway’ e da série de culto ‘Twin Peaks’, graças a esta série, nunca mais pude ouvir Angelo Badalamenti!!
    Agradeço a tua participação mais que original, fantástica!
    Vemos-nos na festa final 🙂

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  4. Patrícia,
    Gostei muito, era tb uma das minhas opções, tinha pensado fazer blue velvet cupcakes, mas já não consigo escrever a segunda participação este mês.
    Adorei o teu texto, é incrivel a facilidade com que nos transportas para outros cenários com as tuas participações, ficamos sempre a querer ler mais.
    bjs e até breve

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  5. Gosto muito de David Lynch. Nunca vi Twin Peaks (passava muito tarde e os meus pais não me deixavam 😦 No entanto, gosto muito de filmes como Mulholland Drive e Lost Highway, que me levaram a andar durante dias a tentar decifrá-los 🙂
    E o sr. Lynch tem ar de quem não diz que não a um Bloody Mary 🙂
    Beijinhos

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  6. Olá Patrícia, o teu jantar foi um bocadinho “tremido” e aterrador 😉 Não sou apreciadora de filmes de terror e que me deixam impressionada, por isso não conheço o teu convidado. Mas não faz mal fico com a bebida que também não conheço, mas apreciaria muito melhor 🙂
    Excelente participação.

    Beijinhos

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  7. Olá Patrícia, isso é que foi um verdadeiro filme!
    Belo suspense! Não vi muito do trabalho desse realizador, mas gostei muito da tua descrição e da trama que envolveu o jantar, de certeza que o Bloody Mary lhe encaixou que nem uma luva 🙂
    Beijinhos e bom fim de semana!

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  8. Olá Patrícia,
    Acredite que me estou a rir!
    Um texto fantástico…embora uma parte não tenha sido meramente fantasia… a terra tremeu a sério!
    Felizmente foi apenas um susto… e o convidado saiu ileso e a anfitriã também!
    Adorei a escolha da receita, tão adequada ao convidado!
    Acompanhei Tween Peeks fervorosamente entre 1990 e 1991… coitadinha da Laura Palmer!
    Ainda guardo a musica com que a séria abria na memória!
    Bjs

    http://belinadailha.blogspot.pt/2011/06/torta-de-espinafres-e-beterraba-com.html

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